quinta-feira, 3 de junho de 2010

Uma entrevista

Entrevista de Sandra Gonçalves para o «Diário Digital», publicada aqui.
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António Manuel Venda
Em busca de uma «mão invisível»

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António Manuel Venda, autor de «Uma Noite com o Fogo», tem um novo romance: «O Sorriso Enigmático do Javali», editado pela Quetzal. Um retrato do quotidiano de uma família que vive num montado alentejano e que tem como figura principal o filho Tukie. Em entrevista ao «Diário Digital», no dia do lançamento do livro [27 de Maio de 2010], o autor revela-nos o seu medo das alclaras – os escorpiões da Serra de Monchique –, cujas picadas deixam uma dor para 24 horas, e que tem em mãos um novo trabalho, mas que, para já, está a precisar de uma «mão invisível» para o concretizar.
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Ao longo da conversa, António Manuel Venda falou do livro, mas houve tempo ainda para um aparte sobre o seu clube do coração, o Sporting, e também do seu blog, o «Floresta do Sul». Sobre a má temporada do Sporting, o autor defende que «nada aconteceu» nesta época «que não se esperasse».
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O dia-a-dia que descreve em «O Sorriso Enigmático do Javali» é o seu?
No livro há bocadinhos do meu dia-a-dia, assim como há bocadinhos do dia-a-dia dos animais que nele entram. Eu socorri-me dos meus lugares para escrever as aventuras do pequeno Tukie e socorri-me também da minha memória, de episódios que nos últimos anos foram acontecendo comigo. Não escrevi nenhuma aventura que não partisse de um desses episódios, e nalguns até cheguei a tirar fotografias, embora sem saber que mais tarde haveria um livro. Por exemplo, tenho fotos de vários animais do livro, a rela, o ouriço-cacheiro, o lagarto, a borboleta...
As referências ao montado, o espaço, os javalis, as ginetas, os mochos e as lebres… São-lhe familiares, tendo em conta que vive no Alentejo?
São familiares por eu viver num montado do Alentejo onde existem todos esses animais, e também porque na infância e na adolescência eu vivia num ambiente parecido, no Algarve, na Serra de Monchique. Se um dia eu me tornasse famoso e desatassem a fazer estudos sobre os meus livros, iam descobrir que neles há mais animais do que pessoas.
Era uma criança curiosa? Revê-se no Tukie?
Eu era curioso, sim, talvez fosse como o pequeno Tukie, mas não se trata de uma questão de me rever nele. Eu gostava de ter passado por estas situações que estiveram na base do que escrevi mas sendo ainda uma criança, e não um adulto. Quando o pequeno Tukie vai mais o pai ver o javali a dormir depois de ter batido com a cabeça num sobreiro, eu gostava de ser o pequeno Tukie e não o pai. Sempre estive muito ligado aos animais desde muito pequeno, e o mesmo acontece com os meus filhos. Mas a ideia mais forte que tenho da minha infância e do contacto com os animais é a da preocupação com as alclaras – o nome por que são conhecidos os escorpiões na Serra de Monchique. Eu tinha sempre bem presente que a picada de uma delas deixava uma dor para vinte e quatro horas, tinha porque ouvia dizer isso, e conhecia muitas pessoas que já tinham sido picadas e que depois contavam das mezinhas para atenuar a dor, por exemplo conseguir apanhar o bicho, fritá-lo em azeite e fazer uma pasta para colocar sobre a picada. Como eu passava o tempo no campo e lá havia muitas alclaras, das amarelas e umas pretas mais pequenas, andava quase sempre de sobreaviso. Talvez por isso, já adulto, num dos romances que escrevi tenha passado capítulos e capítulos a falar das alclaras.
Percebe-se através deste livro que gosta muito de viver no Alentejo. Imagina-se a viver em Lisboa?
Eu vivi muitos anos em Lisboa. Estive cinco na faculdade e depois fiquei mais uns dez, por razões profissionais. E agora o meu trabalho mantém-se em Lisboa, embora eu só aí vá alguns dias durante a semana. Ou seja, consigo imaginar-me a viver em Lisboa, mas a verdade é que não gostaria que isso acontecesse.
Por quê a escolha de um dos capítulos para dar o título ao livro?
A aventura do javali pareceu-me a que tinha o título melhor, a par da do deputado das lebres. Mas o livro tem muitos animais, enquanto que deputados só existe mesmo aquele – que nem é um deputado completo, por lhe faltar um bocado da cabeça. Além disso, o javali sorri, como acontece depois com alguns dos outros animais, por exemplo com o lagarto. O livro é uma narrativa de várias aventuras de um miúdo, o pequeno Tukie. Logo ao princípio eu pensava que se chamaria qualquer coisa com aventuras, mas depois, ao surgirem as histórias, comecei a pensar dar-lhe o título de uma delas. E mantém-se a ideia das aventuras no subtítulo, que é «Primeiras aventuras do pequeno Tukie»; não quer dizer que eu venha a arranjar mais para ele, mas estas serão sempre as primeiras aventuras.
A dada altura fala na Rosa Montero. Gosta dos seus livros? E que outros autores costuma ler?
Eu não conheço muito bem a obra da Rosa Montero, apenas algumas coisas, como o facto de por vezes aparecerem anões, que é uma imagem deste livro, os anões neste caso ao contrário, gigantes capazes de com os seus enormes braços abarcarem o tronco de uma oliveira com muitos séculos. Lembro-me de que na altura em que escrevia essa aventura, a que mete uma cobra que acaba por morrer num estendal, havia uma pessoa que me tinha perguntado se eu gostava dos livros da Rosa Montero, porque andava a ler alguma coisa dela. Acho que foi por isso que acabei por falar dos anões. Quanto a autores que eu costume ler, há um número razoável, mas do que eu estou sempre à espera é de coisas novas dos meus heróis da literatura, o colombiano Santiago Gamboa, o espanhol Javier Cercas e o chileno Roberto Ampuero.
O deputado «quase sem cabeça» e a história das lebres extraterrestres… Como é que lhe surgiu essa ideia?
Já me aconteceram muitos episódios com lebres e coelhos, quando à noite vou a conduzir. Já cheguei a demorar meia-hora para fazer os últimos dois ou três quilómetros do percurso até casa, à noite, pelo montado, por se meterem lebres à frente do carro e depois ter de ir a vinte ou trinta à hora porque elas teimam em não abandonar as luzes. Por isso, num livro como este eu teria de ter algo assim. O pequeno Tukie vai uma noite com o pai fazer uma viagem, só para verem as lebres aos saltos à frente do carro. Às vezes, os escritores dizem aquelas coisas de o livro tomar conta deles, ou a história, de alguém escrever por eles, de haver uma mão invisível tipo Adam Smith só que da literatura em vez de ser da economia… Eu nunca fui muito disso, mas pensando nesta aventura com as lebres talvez o aparecimento do deputado a que falta um bocado da cabeça tenha sido algo parecido. A certa altura, num cruzamento onde muitas vezes à noite eu tenho de parar para olhar para um lado e para o outro para ver se mesmo sem sinais de luzes se aproxima algum carro, nas viagens do Algarve para Alentejo, a certa altura eu estava a escrever, estava a contar que o pai do pequeno Tukie ia a chegar ao cruzamento, já com o filho a dormir, e então apareceu o deputado, em viagem de Lisboa para Beja para fazer, como depois se descobre, trabalho político. Há várias lebres que passam das luzes do carro do pai do pequeno Tukie para as luzes do carro do deputado. Não sei, talvez os escritores da mão invisível que lhes escreve tudo tenham um bocadinho de razão. Nem que seja só um bocadinho, porque depois de o deputado aparecer quem teve de se arranjar para chegar ao fim da história fui eu com as minhas próprias mãos no teclado do computador.
Um aparte, em relação à literatura… sei que é do Sporting. Como explica a temporada dos leões?
O que aconteceu esta temporada só foi uma surpresa pelas situações caricatas que acabaram por juntar-se aos péssimos resultados. De resto, não aconteceu nada que não se esperasse, pelo desleixo, pelo desmazelo e pelo desinteresse que os dirigentes desde o princípio da época demonstraram, a começar pelo presidente, que nitidamente tem pouca competência para o cargo que ocupa. Via-se logo que as coisas não iam acabar bem, assim como para a nova época, com a mesma gente a mandar, é de prever que coisa boa não vai sair dali. Sinto um grande desgosto pelo que se passa no meu clube e o pior é que não vejo maneira de nos livrarmos desta gente.
E através do seu blog, «Floresta do Sul», percebi que tem um fascínio pelos insectos…
Há muitas fotografias de insectos no blog, mas também há de outros animais. Não sei se será fascínio, mas por vezes acabo por passar muito tempo só para conseguir uma fotografia de um deles. E chego a ter boas surpresas. Por exemplo, um ouriço-cacheiro que apanhei de noite a avançar para a máquina fotográfica, sem parar para se enrolar; foi a primeira vez que vi os olhos de um ouriço-cacheiro, na fotografia, porque todos até aí, sem falhar um, todos se tinham enrolado antes de eu lhes ver o focinho. Com os insectos já é diferente, as surpresas que tenho resultam de depois nas fotografias conseguir vê-los ao pormenor, os olhos, as patas, as asas… De qualquer forma, em relação a alguns insectos tenho por vezes a sensação de que falei há pouco, de quando era criança, a preocupação com as alclaras... Por exemplo, os que voam são incontroláveis, pela rapidez que têm, e há umas vespas enormes que me deixam bem preocupado quando as vejo por perto.
Voltando à escrita, já tem algum projecto em mãos?
Não tenho bem o que se pode chamar projectos, mas há coisas que vou escrevendo. Ando a escrever um romance há que tempos, mas para já não avança muito, e ando a escrever umas histórias, só que em vez de ser num montado como as das aventuras do pequeno Tukie, passam-se numa câmara municipal. Não sei se vou conseguir fazer o que tenho em mente, mas pode ser que consiga. Quanto ao romance, para já precisava mesmo era da ajuda de uma mão invisível. Mas vai ter de ser mesmo com as minhas, já sei.
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1 comentário:

  1. Alclara: o nome por que são conhecidos os escorpiões na Serra de Monchique... gostei... ;-)...

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