sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ainda a apresentação em Monchique

Nós, monchiquenses, podemos compreender Miguel Torga quando diz: «É o espírito da terra que eu defendo». Não apenas desta terra em que habitamos, feita de cristas, cabeços, barrancos, gargantas e valados polvilhados de «verde Monchique», mas também o espírito desta terra, pedaço de chão esponjoso de onde jorra o milagre misterioso da vida, onde também há «lugar para magia e assombramentos».
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Texto de Eduardo Duarte, secretário da Junta de Freguesia de Monchique, lido na apresentação do livro na minha terra (ver aqui).
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Por que é que os javalis sorriem?
Eu, Eduardo Duarte, um nome quase tão cacofónico e pleonástico como Geraldo Giraldes, morador no Bairro Alto de São Roque, não de Lisboa, mas de Monchique, terra onde, apesar de não lhes fazer fé na existência, há coisas que só se explicam por inusitados bruxedos talvez vindos ou da Corte da Pomba ou sabe-se lá de que brenhas, coisas essas capazes de nos pôr a rosnar incrédulos «renhaufes». Mas, dizia eu, me confesso, ter sido uma simples capa a prova lúcida e cristalina que fez transitar em julgado a sentença sobre o primeiro dos livros assinados pelo nosso talentoso conterrâneo.
E ainda que a minha, provavelmente assim por ele classificada, desenxabida opinião pouco valha ao escritor que hoje aqui homenageamos, foi, por mera curiosidade, ao reparar no nome Monchique no seu primeiro livro, que iniciei um caminho de aprendizagem sobre o que de tão especial entra nos livros de António Manuel Venda. A partir de então, e até ao dia que hoje conhece mais uma dessas lições, ficou-me guardado para sempre na memória as vezes em que foi a sua prosa que me saudava e afagava com o sopro carinhoso desta terra nos instantes silenciosos de dura saudade que sempre tolhem o cordão umbilical de um jovem estudante, longe da segurança das muralhas acolhedoras da Fóia e da Picota.
É, revendo-nos na escrita prodigiosa de António Manuel Venda, mas também de Manuel do Nascimento e António Silva Carriço, que nós, monchiquenses, podemos compreender Miguel Torga quando diz: «É o espírito da terra que eu defendo». Não apenas desta terra em que habitamos, feita de cristas, cabeços, barrancos, gargantas e valados polvilhados de «verde Monchique» (uma nova tonalidade de verde, a juntar aos por António Manuel Venda desconhecidos «verde tropa» e «verde folha»), mas também o espírito desta terra, pedaço de chão esponjoso de onde jorra o milagre misterioso da vida, onde também há «lugar para magia e assombramentos».
Nesta relação alteritária sem barreiras, entre seres tão humanos como nós, animais e elementos ctónicos, habilmente combinados em laboriosas prosas povoadas por enredos bizarros e personagens singulares, opera-se a transposição espontânea, de forma sublime, para uma dimensão metafísica, do sensível para o supersensível. Esta é a autenticidade que, segundo a concepção kantiana, define os génios. António Manuel Venda lá terá as suas influências literárias, as suas manias, as suas predilecções por palavras ou expressões. Porém, a lisura da sua escrita não segue quaisquer regras, uma vez que é ele mesmo que misteriosamente as fabrica através das escondidas e secretas estruturas da criação que o inundam.
As raízes e vivências monchiquenses terão, certamente, contribuído para a harmonização das suas faculdades enquanto escritor, para a disposição inata do espírito criativo que revela, e terá sido, também daqui, que lhe vieram grande parte das ideias e dos temas sobre as quais versa a sua obra. Não são muitas as localidades que se orgulham do momento que hoje aqui partilhamos. Numa terra onde as altas taxas de iliteracia têm sido um importante obstáculo à obtenção de uma população informada, participativa e pro-activa, que permita enfrentar os desafios que com cada vez maior impetuosidade se nos deparam, porque não fazer da obra dos nossos escritores um elemento cooptador de massa crítica, utilizando o saber patente nos seus livros como vantagem comparativa ao nível da promoção e do marketing territorial?
Agradecendo a supina honra que me foi concedida pela senhora presidente da Junta de Freguesia de Monchique em partilhar convosco estes instantes, termino dizendo que no dia em que António Manuel Venda lançou «O Sorriso Enigmático do Javali», na Bertrand do Chiado, e ainda antes de ter conhecimento do evento que hoje nos reúne, escrevi no meu blogue: «Se eu ainda morasse em Lisboa, já tinha planos para esta noite. E dava um agradecido abraço a um dos mais brilhantes escritores da minha terra. Que é, igualmente, um dos mais brilhantes escritores do meu país.
E, se pudesse também, dir-lhe-ia, nervoso e acanhado, o que aqui digo com orgulho e com o coração a crepitar: através das palavras e da singularidade matizada com que as conjuga em narrativas de encantar, obrigado por elevar o nome de Monchique. Obrigado por tão bem enobrecer a Língua Portuguesa.

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