quarta-feira, 9 de junho de 2010

No «Expresso»

«O Sorriso Enigmático do Javali» é um livro que nos recorda a frase de Sagan, «somos filhos das estrelas», reconciliando-nos com uma natureza cada vez mais distante…
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Texto de Ana Cristina Leonardo, publicado no «Expresso» («Cartaz»), a 05.06.10. A autora disponibilizou o texto no seu blog («Meditação na Pastelaria»).
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Vagar é a palavra. É ela que nos ocorre ao percorrermos estas doze histórias de António Manuel Venda. Doze como os meses do ano, doze como as horas diurnas e doze como as horas nocturnas. E podia até ser um livro de horas, «O Sorriso Enigmático do Javali». Cada história uma iluminura, cada ilustração um desenho naturalista, em todas se insinuando – apenas se insinuando – elementos encantatórios. Nada de cobras aladas, águias guerreiras ou gatos embruxados. Ao mistério basta-lhe o mundo natural, ele próprio e por si próprio um enigma a requerer atenção.
Epifania que se desenrola sem alarde sob o olhar pasmado e interrogativo do pequeno Tukie, a criança que une as narrativas, símbolo de uma inocência que se deixa fascinar – e consigo nos fascina – pelas mutações inesperadas que tomam conta do seu universo: javalis que riem, águias que podiam ser bombas, gatos que ressuscitam, lebres que enganam tolos, texugos que parecem cães…
«O Sorriso Enigmático do Javali» é um livro que nos recorda a frase de Sagan, «somos filhos das estrelas», reconciliando-nos com uma natureza cada vez mais distante, mas que pulsa ainda na Herdade do Convento, onde Tukie tem a felicidade de poder viver com o pai, a mãe e uma irmã bebé.
Narrativa em redondo, na qual cada episódio se fecha num anti-clímax que dá lugar a outro, o mais recente livro de António Manuel Venda soube furtar-se com inteligência às fantasias de efeito fácil e às pedagogias de fácil efeito (um reparo: seriam dispensáveis as incursões políticas cujas mensagens, na minha opinião, apenas poluem o texto). O livro vai-se desenrolando como se nada acontecesse – a acção é sem efeitos especiais, com excepção, talvez, do deputado a quem faltava um bocado de cabeça – e, ainda assim, permite-nos descobrir um mundo febril e imprevisível que se agita sob a aparente calma. A escrita de António Manuel Venda acompanha-o sem alarde, usando-a o escritor com recato e parcimónia, sem nunca se pôr em bicos de pés, o que com certeza afugentaria os elementos que compõem o livro, a exigirem silêncio e discrição.
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