sábado, 19 de junho de 2010

Uma crítica

Se nada no mundo animal que constrói o enredo destas narrativas fica realmente explicado não é apenas porque o olhar da criança o não saiba explicar, é porque ele se constrói fora dos limites de uma explicação. Mas tal significa também conceder ao olhar da criança o privilégio de compreender sem procurar explicar.
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Texto de H. G. Cancela, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (área científica de Estética), publicado no blog «Contra Mundum», aqui (16.06.2010)
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A natureza e a infância (como a doença ou a loucura) constituem dois pólos centrais de afirmação negativa da identidade da cultura e da razão. A racionalização do real (o transformar o mundo numa coisa explicada ou em vias de explicação) constitui uma peça central na visão de mundo herdada da modernidade. Num caso como noutro, está em causa a transformação da coisa em objecto cultural, seja através da manipulação do espaço natural ou da formulação de uma representação explicativa, seja através daquilo a que se chama crescer – entendendo o crescimento como a racionalização das representações de mundo. Talvez a contemporaneidade e alguma consciência ecológica permitam ou exijam uma reformulação desta relação.
O livro «O Sorriso Enigmático do Javali: Primeiras aventuras do pequeno Tukie» (Quetzal, 2010, 102 p.), de António Manuel Venda, propõe-nos perspectivar o mundo a partir dos olhos de uma criança. Não é um discurso na primeira pessoa, mas toda a narrativa assume um registo que privilegia a percepção do mundo do protagonista, o «pequeno Tukie». É um livro que se situa no que poderíamos designar por naturalismo mágico: os animais selvagens (ou apenas «naturais») que povoam o Alentejo surgem aqui como personagens de um conjunto de doze histórias, de um registo naturalista (supondo uma evidente experiência do autor) transfigurado pela atenção sensível e delicada do olhar da criança. O privilégio do olhar faz do protagonista quase sempre mais espectador do que agente – a sua acção é descobrir o mundo, um mundo que lhe é exterior mas do qual ele é parte:
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Distribuíram as ferramentas pelos dois, para o pequeno Tukie a enxada e o ancinho e para o pai o resto, e afastaram-se. Fizeram-no no exacto momento em que o corpo da cobra parava completamente, o mesmo exacto momento em que os três corvos deixaram o ramo da azinheira na direcção do estendal.
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A sensibilidade do olhar do protagonista é também a da escrita do autor. Uma escrita sensível, ao mesmo tempo objectiva e directa sem ser linear – períodos normalmente curtos e quase imediatos, mas articulados, compondo um texto sem muita densidade, mas eficaz. A conjugação do pretérito perfeito com o imperfeito permite conferir à narrativa quer uma objectividade assinalável, quer uma dimensão de fábula que faz deste um livro quase capaz de ser lido por uma criança: tal não significa uma menorização dos textos, mas a consciência de que a nitidez da escrita e a subtil efabulação admitem tal nível de leitura.
Estamos diante de um registo linguístico mais neutro do que nos primeiros livros do autor. Notam-se também menos os traços surrealizantes. Distintamente de ser entendido como uma possível perda de traços de «autoria», aquilo que resulta é uma escrita mais rica porque mais focada. Por vezes, é possível que uma revisão mais exigente tivesse evitado algumas cedências, como a excessiva coloquialidade de algumas formulações, etc. Prescindível seria também a oposição forçada entre a cidade e o campo (esta é ainda uma forma de prolongar uma lógica de exclusão que não faz justiça a nenhum dos termos), assim como algumas considerações delas decorrentes, as de ordem política, por exemplo.
Apesar da ameaça da dispersão inerente à divisão da estrutura do texto em doze histórias que se sucedem sem outro fio narrativo que não o da presença da criança, o livro resulta orgânico, servido por dispositivos narrativos tão simples quanto eficazes. Por exemplo, é muito conseguido o modo como os diferentes elementos da narrativa (contexto espacial, personagens, etc) vão sendo introduzidos de forma gradual – no primeiro episódio, apenas a criança e os animais, no segundo, o pai, depois a mãe e a bebé, etc.
Se nada no mundo animal que constrói o enredo destas narrativas fica realmente explicado não é apenas porque o olhar da criança o não saiba explicar, é porque ele se constrói fora dos limites de uma explicação. Mas tal significa também conceder ao olhar da criança o privilégio de compreender sem procurar explicar. Precisamente por isso, é pena que o livro não assuma o subtítulo («Primeiras aventuras do pequeno Tukie») como título. Seria talvez menos apelativo do ponto de vista comercial, mas mais forte na sua articulação com a narrativa.
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