quarta-feira, 30 de junho de 2010

Mais uma personagem

Desta vez, o lagarto da clave de sol.
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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Um post de Adriana Freire Nogueira

No seu blog («A Senhora Sócrates»), sobre «O Sorriso Enigmático do Javali», que apresentou em Monchique.
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. … uma escrita antiga e por isso tão próxima da fantasia dos simples, que aceitam com naturalidade o que outros a civilização fez chamar diferente, estranho, estrangeiro.
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Dia de sorrisos
Apresentei em Monchique o livro de António Manuel Venda «O Sorriso Enigmático do Javali». Nesta fotografia, estamos todos deleitados a ouvir o secretário da Junta de Freguesia a ler a sua introdução, num estilo «vendiano».
Ora só o tempo permite que se crie um estilo. E por isso, por muito que insistam em chamar a António Manuel Venda um jovem escritor, ele não o é. É apenas um escritor jovem. E a juventude não se percebe apenas na timidez do olhar ou na inquietude das mãos que se movem com as palavras, quando fala, construindo castelos, casinhas ou outras arquitecturas, mas na escrita. Uma escrita antiga e por isso tão próxima da fantasia dos simples, que aceitam com naturalidade o que outros a civilização fez chamar diferente, estranho, estrangeiro.
Por isso o mundo visto pelos olhos – ou pela máquina fotográfica – do pequeno Tukie, ou do pai do pequeno Tukie, é um mundo em que o fantástico não existe como tal.
Por isso chamei a «O Sorriso Enigmático do Javali» um livro de felicidade.
Não uma felicidade que transborda ou ofusca o que está à volta, mas felicidade porque nos faz sentir que pertencemos, que não estamos sozinhos na nossa coexistência, pessoas e animais.
Felicidade, porque mesmo aquilo que pode ser mais triste ou violento (como a morte de uma garça num arame farpado) é vivido com simplicidade, sem drama.
Felicidade, porque ali não há sentimentos que ferem e magoam.
E apesar de conseguir muito bem construir o suspense, as histórias que ele nos conta acabam serenamente, com ternura e humor.
E quem me observou a ler o livro, terá visto claramente os meus sorrisos nada enigmáticos.

Mais uma personagem

Já cá faltava, o javali.
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sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ainda a apresentação em Monchique

Nós, monchiquenses, podemos compreender Miguel Torga quando diz: «É o espírito da terra que eu defendo». Não apenas desta terra em que habitamos, feita de cristas, cabeços, barrancos, gargantas e valados polvilhados de «verde Monchique», mas também o espírito desta terra, pedaço de chão esponjoso de onde jorra o milagre misterioso da vida, onde também há «lugar para magia e assombramentos».
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Texto de Eduardo Duarte, secretário da Junta de Freguesia de Monchique, lido na apresentação do livro na minha terra (ver aqui).
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Por que é que os javalis sorriem?
Eu, Eduardo Duarte, um nome quase tão cacofónico e pleonástico como Geraldo Giraldes, morador no Bairro Alto de São Roque, não de Lisboa, mas de Monchique, terra onde, apesar de não lhes fazer fé na existência, há coisas que só se explicam por inusitados bruxedos talvez vindos ou da Corte da Pomba ou sabe-se lá de que brenhas, coisas essas capazes de nos pôr a rosnar incrédulos «renhaufes». Mas, dizia eu, me confesso, ter sido uma simples capa a prova lúcida e cristalina que fez transitar em julgado a sentença sobre o primeiro dos livros assinados pelo nosso talentoso conterrâneo.
E ainda que a minha, provavelmente assim por ele classificada, desenxabida opinião pouco valha ao escritor que hoje aqui homenageamos, foi, por mera curiosidade, ao reparar no nome Monchique no seu primeiro livro, que iniciei um caminho de aprendizagem sobre o que de tão especial entra nos livros de António Manuel Venda. A partir de então, e até ao dia que hoje conhece mais uma dessas lições, ficou-me guardado para sempre na memória as vezes em que foi a sua prosa que me saudava e afagava com o sopro carinhoso desta terra nos instantes silenciosos de dura saudade que sempre tolhem o cordão umbilical de um jovem estudante, longe da segurança das muralhas acolhedoras da Fóia e da Picota.
É, revendo-nos na escrita prodigiosa de António Manuel Venda, mas também de Manuel do Nascimento e António Silva Carriço, que nós, monchiquenses, podemos compreender Miguel Torga quando diz: «É o espírito da terra que eu defendo». Não apenas desta terra em que habitamos, feita de cristas, cabeços, barrancos, gargantas e valados polvilhados de «verde Monchique» (uma nova tonalidade de verde, a juntar aos por António Manuel Venda desconhecidos «verde tropa» e «verde folha»), mas também o espírito desta terra, pedaço de chão esponjoso de onde jorra o milagre misterioso da vida, onde também há «lugar para magia e assombramentos».
Nesta relação alteritária sem barreiras, entre seres tão humanos como nós, animais e elementos ctónicos, habilmente combinados em laboriosas prosas povoadas por enredos bizarros e personagens singulares, opera-se a transposição espontânea, de forma sublime, para uma dimensão metafísica, do sensível para o supersensível. Esta é a autenticidade que, segundo a concepção kantiana, define os génios. António Manuel Venda lá terá as suas influências literárias, as suas manias, as suas predilecções por palavras ou expressões. Porém, a lisura da sua escrita não segue quaisquer regras, uma vez que é ele mesmo que misteriosamente as fabrica através das escondidas e secretas estruturas da criação que o inundam.
As raízes e vivências monchiquenses terão, certamente, contribuído para a harmonização das suas faculdades enquanto escritor, para a disposição inata do espírito criativo que revela, e terá sido, também daqui, que lhe vieram grande parte das ideias e dos temas sobre as quais versa a sua obra. Não são muitas as localidades que se orgulham do momento que hoje aqui partilhamos. Numa terra onde as altas taxas de iliteracia têm sido um importante obstáculo à obtenção de uma população informada, participativa e pro-activa, que permita enfrentar os desafios que com cada vez maior impetuosidade se nos deparam, porque não fazer da obra dos nossos escritores um elemento cooptador de massa crítica, utilizando o saber patente nos seus livros como vantagem comparativa ao nível da promoção e do marketing territorial?
Agradecendo a supina honra que me foi concedida pela senhora presidente da Junta de Freguesia de Monchique em partilhar convosco estes instantes, termino dizendo que no dia em que António Manuel Venda lançou «O Sorriso Enigmático do Javali», na Bertrand do Chiado, e ainda antes de ter conhecimento do evento que hoje nos reúne, escrevi no meu blogue: «Se eu ainda morasse em Lisboa, já tinha planos para esta noite. E dava um agradecido abraço a um dos mais brilhantes escritores da minha terra. Que é, igualmente, um dos mais brilhantes escritores do meu país.
E, se pudesse também, dir-lhe-ia, nervoso e acanhado, o que aqui digo com orgulho e com o coração a crepitar: através das palavras e da singularidade matizada com que as conjuga em narrativas de encantar, obrigado por elevar o nome de Monchique. Obrigado por tão bem enobrecer a Língua Portuguesa.

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sábado, 19 de junho de 2010

Uma crítica

Se nada no mundo animal que constrói o enredo destas narrativas fica realmente explicado não é apenas porque o olhar da criança o não saiba explicar, é porque ele se constrói fora dos limites de uma explicação. Mas tal significa também conceder ao olhar da criança o privilégio de compreender sem procurar explicar.
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Texto de H. G. Cancela, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (área científica de Estética), publicado no blog «Contra Mundum», aqui (16.06.2010)
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A natureza e a infância (como a doença ou a loucura) constituem dois pólos centrais de afirmação negativa da identidade da cultura e da razão. A racionalização do real (o transformar o mundo numa coisa explicada ou em vias de explicação) constitui uma peça central na visão de mundo herdada da modernidade. Num caso como noutro, está em causa a transformação da coisa em objecto cultural, seja através da manipulação do espaço natural ou da formulação de uma representação explicativa, seja através daquilo a que se chama crescer – entendendo o crescimento como a racionalização das representações de mundo. Talvez a contemporaneidade e alguma consciência ecológica permitam ou exijam uma reformulação desta relação.
O livro «O Sorriso Enigmático do Javali: Primeiras aventuras do pequeno Tukie» (Quetzal, 2010, 102 p.), de António Manuel Venda, propõe-nos perspectivar o mundo a partir dos olhos de uma criança. Não é um discurso na primeira pessoa, mas toda a narrativa assume um registo que privilegia a percepção do mundo do protagonista, o «pequeno Tukie». É um livro que se situa no que poderíamos designar por naturalismo mágico: os animais selvagens (ou apenas «naturais») que povoam o Alentejo surgem aqui como personagens de um conjunto de doze histórias, de um registo naturalista (supondo uma evidente experiência do autor) transfigurado pela atenção sensível e delicada do olhar da criança. O privilégio do olhar faz do protagonista quase sempre mais espectador do que agente – a sua acção é descobrir o mundo, um mundo que lhe é exterior mas do qual ele é parte:
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Distribuíram as ferramentas pelos dois, para o pequeno Tukie a enxada e o ancinho e para o pai o resto, e afastaram-se. Fizeram-no no exacto momento em que o corpo da cobra parava completamente, o mesmo exacto momento em que os três corvos deixaram o ramo da azinheira na direcção do estendal.
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A sensibilidade do olhar do protagonista é também a da escrita do autor. Uma escrita sensível, ao mesmo tempo objectiva e directa sem ser linear – períodos normalmente curtos e quase imediatos, mas articulados, compondo um texto sem muita densidade, mas eficaz. A conjugação do pretérito perfeito com o imperfeito permite conferir à narrativa quer uma objectividade assinalável, quer uma dimensão de fábula que faz deste um livro quase capaz de ser lido por uma criança: tal não significa uma menorização dos textos, mas a consciência de que a nitidez da escrita e a subtil efabulação admitem tal nível de leitura.
Estamos diante de um registo linguístico mais neutro do que nos primeiros livros do autor. Notam-se também menos os traços surrealizantes. Distintamente de ser entendido como uma possível perda de traços de «autoria», aquilo que resulta é uma escrita mais rica porque mais focada. Por vezes, é possível que uma revisão mais exigente tivesse evitado algumas cedências, como a excessiva coloquialidade de algumas formulações, etc. Prescindível seria também a oposição forçada entre a cidade e o campo (esta é ainda uma forma de prolongar uma lógica de exclusão que não faz justiça a nenhum dos termos), assim como algumas considerações delas decorrentes, as de ordem política, por exemplo.
Apesar da ameaça da dispersão inerente à divisão da estrutura do texto em doze histórias que se sucedem sem outro fio narrativo que não o da presença da criança, o livro resulta orgânico, servido por dispositivos narrativos tão simples quanto eficazes. Por exemplo, é muito conseguido o modo como os diferentes elementos da narrativa (contexto espacial, personagens, etc) vão sendo introduzidos de forma gradual – no primeiro episódio, apenas a criança e os animais, no segundo, o pai, depois a mãe e a bebé, etc.
Se nada no mundo animal que constrói o enredo destas narrativas fica realmente explicado não é apenas porque o olhar da criança o não saiba explicar, é porque ele se constrói fora dos limites de uma explicação. Mas tal significa também conceder ao olhar da criança o privilégio de compreender sem procurar explicar. Precisamente por isso, é pena que o livro não assuma o subtítulo («Primeiras aventuras do pequeno Tukie») como título. Seria talvez menos apelativo do ponto de vista comercial, mas mais forte na sua articulação com a narrativa.
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domingo, 13 de junho de 2010

Apresentação em Monchique

Apresentação na minha terra (Monchique, no Algarve), no Longevity Wellness Resort Monchique (Caldas de Monchique), na tarde de 12 de Junho de 2010. A organização foi da Junta de Freguesia de Monchique, tendo o livro sido apresentado por Adriana Freire Nogueira, professora da Universidade do Algarve. Na mesa, da esquerda para a direita, Ana Paula Gervásio (presidente da Junta de Freguesia de Monchique), Rui André (presidente da Câmara Municipal de Monchique), eu, Adriana Freire Nogueira e Eduardo Duarte (secretário da Junta de Freguesia de Monchique).
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Fotos: Patrícia Jaime
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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Na minha terra

Apresentação na minha terra, Monchique. Sábado, 12 de Junho, pelas 16H30.
(clicar na imagem para aumentar)
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quarta-feira, 9 de junho de 2010

No «Expresso»

«O Sorriso Enigmático do Javali» é um livro que nos recorda a frase de Sagan, «somos filhos das estrelas», reconciliando-nos com uma natureza cada vez mais distante…
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Texto de Ana Cristina Leonardo, publicado no «Expresso» («Cartaz»), a 05.06.10. A autora disponibilizou o texto no seu blog («Meditação na Pastelaria»).
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Vagar é a palavra. É ela que nos ocorre ao percorrermos estas doze histórias de António Manuel Venda. Doze como os meses do ano, doze como as horas diurnas e doze como as horas nocturnas. E podia até ser um livro de horas, «O Sorriso Enigmático do Javali». Cada história uma iluminura, cada ilustração um desenho naturalista, em todas se insinuando – apenas se insinuando – elementos encantatórios. Nada de cobras aladas, águias guerreiras ou gatos embruxados. Ao mistério basta-lhe o mundo natural, ele próprio e por si próprio um enigma a requerer atenção.
Epifania que se desenrola sem alarde sob o olhar pasmado e interrogativo do pequeno Tukie, a criança que une as narrativas, símbolo de uma inocência que se deixa fascinar – e consigo nos fascina – pelas mutações inesperadas que tomam conta do seu universo: javalis que riem, águias que podiam ser bombas, gatos que ressuscitam, lebres que enganam tolos, texugos que parecem cães…
«O Sorriso Enigmático do Javali» é um livro que nos recorda a frase de Sagan, «somos filhos das estrelas», reconciliando-nos com uma natureza cada vez mais distante, mas que pulsa ainda na Herdade do Convento, onde Tukie tem a felicidade de poder viver com o pai, a mãe e uma irmã bebé.
Narrativa em redondo, na qual cada episódio se fecha num anti-clímax que dá lugar a outro, o mais recente livro de António Manuel Venda soube furtar-se com inteligência às fantasias de efeito fácil e às pedagogias de fácil efeito (um reparo: seriam dispensáveis as incursões políticas cujas mensagens, na minha opinião, apenas poluem o texto). O livro vai-se desenrolando como se nada acontecesse – a acção é sem efeitos especiais, com excepção, talvez, do deputado a quem faltava um bocado de cabeça – e, ainda assim, permite-nos descobrir um mundo febril e imprevisível que se agita sob a aparente calma. A escrita de António Manuel Venda acompanha-o sem alarde, usando-a o escritor com recato e parcimónia, sem nunca se pôr em bicos de pés, o que com certeza afugentaria os elementos que compõem o livro, a exigirem silêncio e discrição.
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quinta-feira, 3 de junho de 2010

O que eu disse..

O que eu disse na apresentação do livro em Lisboa (27.05.10, Livraria Bertrand do Chiado). Ou seja, as notas que escrevi um pouco antes de chegar à livraria, agora passadas a limpo.
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Se um dia eu fosse famoso e fizessem estudos sobre os meus livros, iriam descobrir que neles há mais animais do que pessoas.
Não me refiro a este «O Sorriso Enigmático do Javali», refiro-me aos livros anteriores.
Mesmo assim, apesar de esses livros terem vindo a aparecer, eu sempre quis escrever um livro com histórias de animais. Claro que, como em muitos outros projectos, não consegui.
Só que um dia, ia a regressar a casa, pelo montado, vi uma coisa um bocado macabra – uma garça morta numa vedação de arame farpado. Estive quase uma hora para conseguir tirá-la dos bicos do arame, que a prendiam pelo pescoço. Mesmo morta, eu não podia deixá-la lá.
Enquanto estive naquilo, senti uma enorme tranquilidade. Lembro-me de que estava preocupado com coisas do trabalho, o que tinha para fazer. Estava, como agora é moda dizer, em stress.
Com aquilo da garça no arame farpado, tudo passou. Esqueci-me mesmo das preocupações. Durante esse tempo, muito concentrado, sem perceber como vi um miúdo a fazer o que eu estava a fazer; e na estrada de terra não estava parado o meu carro, mas sim uma pequena bicicleta.
Vi-me um miúdo, e vi naquele momento as imagens da primeira aventura do livro. A da garça, que nem tem garça no título, mas um casal de perdizes.
Foi assim que nasceu este livro, o meu livro dos animais. Foi preciso eu ver um miúdo a libertar a garça morta do arame farpado, a fazer exactamente o que eu estava a fazer.
Na altura o meu filho era ainda pequenino. Era um bebé. Com o passar do tempo, já com o livro a ser terminado, e com muitos outros animais nas suas páginas – a gineta, a rela, o texugo, a cobra, a borboleta, o lagarto, entre outros – , acabei por ver também nessas páginas o pequeno Tukie, que andava pelo montado mais o pai. O meu filho. Eu e o meu filho.
Mas do que eu gostava mesmo era de eu próprio ser o pequeno Tukie. Fica o livro.

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Uma entrevista

Entrevista de Sandra Gonçalves para o «Diário Digital», publicada aqui.
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António Manuel Venda
Em busca de uma «mão invisível»

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António Manuel Venda, autor de «Uma Noite com o Fogo», tem um novo romance: «O Sorriso Enigmático do Javali», editado pela Quetzal. Um retrato do quotidiano de uma família que vive num montado alentejano e que tem como figura principal o filho Tukie. Em entrevista ao «Diário Digital», no dia do lançamento do livro [27 de Maio de 2010], o autor revela-nos o seu medo das alclaras – os escorpiões da Serra de Monchique –, cujas picadas deixam uma dor para 24 horas, e que tem em mãos um novo trabalho, mas que, para já, está a precisar de uma «mão invisível» para o concretizar.
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Ao longo da conversa, António Manuel Venda falou do livro, mas houve tempo ainda para um aparte sobre o seu clube do coração, o Sporting, e também do seu blog, o «Floresta do Sul». Sobre a má temporada do Sporting, o autor defende que «nada aconteceu» nesta época «que não se esperasse».
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O dia-a-dia que descreve em «O Sorriso Enigmático do Javali» é o seu?
No livro há bocadinhos do meu dia-a-dia, assim como há bocadinhos do dia-a-dia dos animais que nele entram. Eu socorri-me dos meus lugares para escrever as aventuras do pequeno Tukie e socorri-me também da minha memória, de episódios que nos últimos anos foram acontecendo comigo. Não escrevi nenhuma aventura que não partisse de um desses episódios, e nalguns até cheguei a tirar fotografias, embora sem saber que mais tarde haveria um livro. Por exemplo, tenho fotos de vários animais do livro, a rela, o ouriço-cacheiro, o lagarto, a borboleta...
As referências ao montado, o espaço, os javalis, as ginetas, os mochos e as lebres… São-lhe familiares, tendo em conta que vive no Alentejo?
São familiares por eu viver num montado do Alentejo onde existem todos esses animais, e também porque na infância e na adolescência eu vivia num ambiente parecido, no Algarve, na Serra de Monchique. Se um dia eu me tornasse famoso e desatassem a fazer estudos sobre os meus livros, iam descobrir que neles há mais animais do que pessoas.
Era uma criança curiosa? Revê-se no Tukie?
Eu era curioso, sim, talvez fosse como o pequeno Tukie, mas não se trata de uma questão de me rever nele. Eu gostava de ter passado por estas situações que estiveram na base do que escrevi mas sendo ainda uma criança, e não um adulto. Quando o pequeno Tukie vai mais o pai ver o javali a dormir depois de ter batido com a cabeça num sobreiro, eu gostava de ser o pequeno Tukie e não o pai. Sempre estive muito ligado aos animais desde muito pequeno, e o mesmo acontece com os meus filhos. Mas a ideia mais forte que tenho da minha infância e do contacto com os animais é a da preocupação com as alclaras – o nome por que são conhecidos os escorpiões na Serra de Monchique. Eu tinha sempre bem presente que a picada de uma delas deixava uma dor para vinte e quatro horas, tinha porque ouvia dizer isso, e conhecia muitas pessoas que já tinham sido picadas e que depois contavam das mezinhas para atenuar a dor, por exemplo conseguir apanhar o bicho, fritá-lo em azeite e fazer uma pasta para colocar sobre a picada. Como eu passava o tempo no campo e lá havia muitas alclaras, das amarelas e umas pretas mais pequenas, andava quase sempre de sobreaviso. Talvez por isso, já adulto, num dos romances que escrevi tenha passado capítulos e capítulos a falar das alclaras.
Percebe-se através deste livro que gosta muito de viver no Alentejo. Imagina-se a viver em Lisboa?
Eu vivi muitos anos em Lisboa. Estive cinco na faculdade e depois fiquei mais uns dez, por razões profissionais. E agora o meu trabalho mantém-se em Lisboa, embora eu só aí vá alguns dias durante a semana. Ou seja, consigo imaginar-me a viver em Lisboa, mas a verdade é que não gostaria que isso acontecesse.
Por quê a escolha de um dos capítulos para dar o título ao livro?
A aventura do javali pareceu-me a que tinha o título melhor, a par da do deputado das lebres. Mas o livro tem muitos animais, enquanto que deputados só existe mesmo aquele – que nem é um deputado completo, por lhe faltar um bocado da cabeça. Além disso, o javali sorri, como acontece depois com alguns dos outros animais, por exemplo com o lagarto. O livro é uma narrativa de várias aventuras de um miúdo, o pequeno Tukie. Logo ao princípio eu pensava que se chamaria qualquer coisa com aventuras, mas depois, ao surgirem as histórias, comecei a pensar dar-lhe o título de uma delas. E mantém-se a ideia das aventuras no subtítulo, que é «Primeiras aventuras do pequeno Tukie»; não quer dizer que eu venha a arranjar mais para ele, mas estas serão sempre as primeiras aventuras.
A dada altura fala na Rosa Montero. Gosta dos seus livros? E que outros autores costuma ler?
Eu não conheço muito bem a obra da Rosa Montero, apenas algumas coisas, como o facto de por vezes aparecerem anões, que é uma imagem deste livro, os anões neste caso ao contrário, gigantes capazes de com os seus enormes braços abarcarem o tronco de uma oliveira com muitos séculos. Lembro-me de que na altura em que escrevia essa aventura, a que mete uma cobra que acaba por morrer num estendal, havia uma pessoa que me tinha perguntado se eu gostava dos livros da Rosa Montero, porque andava a ler alguma coisa dela. Acho que foi por isso que acabei por falar dos anões. Quanto a autores que eu costume ler, há um número razoável, mas do que eu estou sempre à espera é de coisas novas dos meus heróis da literatura, o colombiano Santiago Gamboa, o espanhol Javier Cercas e o chileno Roberto Ampuero.
O deputado «quase sem cabeça» e a história das lebres extraterrestres… Como é que lhe surgiu essa ideia?
Já me aconteceram muitos episódios com lebres e coelhos, quando à noite vou a conduzir. Já cheguei a demorar meia-hora para fazer os últimos dois ou três quilómetros do percurso até casa, à noite, pelo montado, por se meterem lebres à frente do carro e depois ter de ir a vinte ou trinta à hora porque elas teimam em não abandonar as luzes. Por isso, num livro como este eu teria de ter algo assim. O pequeno Tukie vai uma noite com o pai fazer uma viagem, só para verem as lebres aos saltos à frente do carro. Às vezes, os escritores dizem aquelas coisas de o livro tomar conta deles, ou a história, de alguém escrever por eles, de haver uma mão invisível tipo Adam Smith só que da literatura em vez de ser da economia… Eu nunca fui muito disso, mas pensando nesta aventura com as lebres talvez o aparecimento do deputado a que falta um bocado da cabeça tenha sido algo parecido. A certa altura, num cruzamento onde muitas vezes à noite eu tenho de parar para olhar para um lado e para o outro para ver se mesmo sem sinais de luzes se aproxima algum carro, nas viagens do Algarve para Alentejo, a certa altura eu estava a escrever, estava a contar que o pai do pequeno Tukie ia a chegar ao cruzamento, já com o filho a dormir, e então apareceu o deputado, em viagem de Lisboa para Beja para fazer, como depois se descobre, trabalho político. Há várias lebres que passam das luzes do carro do pai do pequeno Tukie para as luzes do carro do deputado. Não sei, talvez os escritores da mão invisível que lhes escreve tudo tenham um bocadinho de razão. Nem que seja só um bocadinho, porque depois de o deputado aparecer quem teve de se arranjar para chegar ao fim da história fui eu com as minhas próprias mãos no teclado do computador.
Um aparte, em relação à literatura… sei que é do Sporting. Como explica a temporada dos leões?
O que aconteceu esta temporada só foi uma surpresa pelas situações caricatas que acabaram por juntar-se aos péssimos resultados. De resto, não aconteceu nada que não se esperasse, pelo desleixo, pelo desmazelo e pelo desinteresse que os dirigentes desde o princípio da época demonstraram, a começar pelo presidente, que nitidamente tem pouca competência para o cargo que ocupa. Via-se logo que as coisas não iam acabar bem, assim como para a nova época, com a mesma gente a mandar, é de prever que coisa boa não vai sair dali. Sinto um grande desgosto pelo que se passa no meu clube e o pior é que não vejo maneira de nos livrarmos desta gente.
E através do seu blog, «Floresta do Sul», percebi que tem um fascínio pelos insectos…
Há muitas fotografias de insectos no blog, mas também há de outros animais. Não sei se será fascínio, mas por vezes acabo por passar muito tempo só para conseguir uma fotografia de um deles. E chego a ter boas surpresas. Por exemplo, um ouriço-cacheiro que apanhei de noite a avançar para a máquina fotográfica, sem parar para se enrolar; foi a primeira vez que vi os olhos de um ouriço-cacheiro, na fotografia, porque todos até aí, sem falhar um, todos se tinham enrolado antes de eu lhes ver o focinho. Com os insectos já é diferente, as surpresas que tenho resultam de depois nas fotografias conseguir vê-los ao pormenor, os olhos, as patas, as asas… De qualquer forma, em relação a alguns insectos tenho por vezes a sensação de que falei há pouco, de quando era criança, a preocupação com as alclaras... Por exemplo, os que voam são incontroláveis, pela rapidez que têm, e há umas vespas enormes que me deixam bem preocupado quando as vejo por perto.
Voltando à escrita, já tem algum projecto em mãos?
Não tenho bem o que se pode chamar projectos, mas há coisas que vou escrevendo. Ando a escrever um romance há que tempos, mas para já não avança muito, e ando a escrever umas histórias, só que em vez de ser num montado como as das aventuras do pequeno Tukie, passam-se numa câmara municipal. Não sei se vou conseguir fazer o que tenho em mente, mas pode ser que consiga. Quanto ao romance, para já precisava mesmo era da ajuda de uma mão invisível. Mas vai ter de ser mesmo com as minhas, já sei.
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